Um caso curioso e atípico ocorrido em Brusque acabou virando notícia nacional. Um homem furtou algumas peças de picanha em um supermercado da cidade, foi detido, mas o gerente do estabelecimento também recebeu voz de prisão. A decisão de prendê-lo foi do delegado David Queiroz, que responde pela Delegacia de Proteção a Mulher Criança e ao Adolescente (Dpcami) e que estava de plantão no dia do fato, o último sábado (4).
Tudo começa quando a Polícia Militar é acionada para averiguar o furto no supermercado. Lá, os policiais detém o suspeito, que é encaminhado à delegacia. Em depoimento a Queiroz, o homem confirma que furtou quatro pedaços de picanha. Só que os policiais encontraram com ele 14 peças da carne.
A situação toma outro rumo quando o delegado questiona o gerente do supermercado e ele confirma que colocou outros dez pedaços do produto no pacote que o ladrão segurava. A intenção, teria dito ao policial, era de aumentar a responsabilidade do crime. Isso porque se fosse pego com apenas quatro pedaços ele seria posto em liberdade de imediato. Ao ouvir tal confissão, o delegado deu voz de prisão ao gerente.
A situação gerou uma série de críticas à postura do policial. Em entrevista à Rádio Cidade nesta quinta-feira (9), o delegado explicou os motivos do desabafo que fez em redes sociais sobre os caso. David Queiroz de Souza leciona na academia de policia, também em cursos preparatórios em direito e atualmente faz mestrado em ciências criminais na PUC do Rio Grande do Sul.
“A intenção no desabafo era mostrar o que eu aplico nas salas de aula, como é aplicado na prática. Logo que o caso ocorreu, eu montei um pequeno texto e acabei colocando no Facebook com foco acadêmico. Para minha surpresa, isso acabou ganhando uma repercussão muito grande. Foi publicado em seguida um artigo, também com cunho acadêmico, para explicar qual o papel do delgado de policia diante desses casos”.
O delegado diz que, infelizmente, a tentativa de fazer justiça com as próprias mãos ocorreu nesse caso, em menção à atitude do gerente. “Acredito, de certa forma, revoltado com a situação que estava ocorrendo no estabelecimento que ele representa acabou também cometendo um crime, o de fraude processual, que é caracterizado antes mesmo de começar o processo quando vai resultar em processo criminal”, explicou o delegado Queiroz.
O policial faz menção ao título do artigo na rede social, onde diz que não fez concurso para Batman. “Fiz concurso pra ser delegado de polícia, que é o primeiro garantidor dos direitos fundamentais de qualquer pessoa. Temos que extirpar da nossa cabeça esse maniqueísmo entre bons e maus. A população precisa da polícia como um órgão que vai aplicar a lei e que é o primeiro braço do estado”, concluiu.
O delegado disse que ficou constrangido quando o gerente do mercado afirmou que colocou as peças de carne a mais para incriminar ainda mais o suspeito. “Eu sei que ele cometeu um ato ilícito. Contudo, não é um criminoso e, diante disso, é desagradável agir daquela forma, ter que prender uma pessoa naquela situação. Tenho certeza que muitos devem estar condenando minha atitude porque a população vive uma sensação de impunidade muito grande. Contudo, tenho a convicção não é um fomentador de impunidade”.
Confira o comentário feito pelo delegado no Facebook .
“Não fiz concurso para Batman!
Não costumo comentar sobre as ocorrência policias que participo, mas acredito que a de hoje mereça discussão.
Um cidadão foi apresentado na delegacia de polícia acusado de ter sido flagrado tentado deixar um mercado com 14 peças de picanha. Iniciado o interrogatório do conduzido cientifiquei-o do direito de permanecer calado e da acusação que pesava em seu desfavor. O conduzido, então, usuário de drogas, confessou a tentativa de furto, contudo aduziu que havia tentado furta 04 peças de carne e não 14, como afirmado pelo gerente do estabelecimento comercial. Dirigi-me ao gerente do local e indaguei-lhe sobre a alegação do preso. Surpreendentemente ele respondeu que havia implantado as outras 10 peças de carne junto ao preso porque sabia que somente com as 04 peças realmente subtraídas ele seria solto ainda na delegacia de polícia, tendo em vista a aplicação do princípio da insignificância! Respirei fundo e confesso que por um instante pensei em simplesmente ignorar a confissão que estava fazendo. Acredito que ele também imaginou que eu apoiaria sua atitude, motivo pelo qual confessou. Todavia, a vontade de “fazer a coisa certa” falou mais alto. Assim, constrangido, e após até mesmo pedir desculpas ao gerente, dei-lhe voz de prisão em flagrante pelo crime de fraude processual (art. 347 do CP).
Tudo estaria perfeito se a história parasse por aqui. Contudo, minha atitude, respeitosa à lei, gerou indignação de muitos e severas críticas, como, por exemplo: É um absurdo soltar o “vagabundo” e prender “vitima”? Que falta de bom senso desse delegado, poderia ter dado um “jeitinho”, bastava ignorar a afirmação do preso; Se ele quer proteger o preso, vira defensor; É por isso que país não vai para frente, somente os “vagabundos” tem direitos.
Confesso que em nada me agrada ouvir essas afirmações. Enfatizo que não senti nenhum prazer em dar voz de prisão aquele homem. Mas gostaria de deixar bem claro uma coisa: eu não fiz concurso para Batman! Não é função do delegado de polícia ser “justiceiro” e tentar solucionar o problema da criminalidade com as próprias mãos. Orgulho-me de dizer que delegado de polícia é o primeiro garantidor dos direitos individuais e isso não pode ser mera retórica. O delegado de polícia deve buscar a imparcialidade e deixar de lado o maniqueísmo contaminante que cega qualquer raciocínio jurídico sensato.
Seria muito fácil me omitir diante da afirmação daquele “infeliz” que foi conduzido pelo furto de picanhas. Seria muito fácil simplesmente manda-lo para o presídio, afinal, “é só mais um viciado”. Mas eu não conseguiria dormir tranquilo diante de tamanha injustiça.
Resta-me agora tentar convencer os “especialistas em segurança pública” que minha atitude não é um fomentador de criminalidade, mas a demonstração de a delegacia de polícia é um lugar onde a lei é cumprida.
Resta-me, também, a difícil tarefa de me sentir menos constrangido diante da voz de prisão das consequentes críticas.
Vou me socorrer em Rui Barbosa: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."




